Sinha Bela

Quando nasci ela estava em nossa casa, beirava 65 anos de idade, 
não obstante, a imagem que a memória reteve é a de uma mulher mais 
idosa, de feições tranquilas e ternas, reveladoras de bondade, amor e 
compreensão. 
Rosto rendilhado de vincos e rugas de cujo emaranhado emergiam 
olhos pretos e miúdos. 
Seu olhar era triste, parecia voltado para o passado, revolvendo-o 
em busca da felicidade destroçada. 
Era baixa, tinha a pele clara crestada pelo calor, giba acentuada, 
testa curta, pés pequenos, chatos, calosos e rachados. Seus cabelos eram 
longos e grisalhos, arrumados em coque assentado na nuca, preso com 
um pente. 
Seus passos eram firmes e decididos. 
Quando saia aos domingos à tarde enrodilhava na cabeça um xale 
de cor escura com franjas longas e estampa quadriculada; tinha-o na ca- 
beça ou jogado displicentemente sobre os ombros. Era seu abrigo para 
o sereno e o frio. 
Enquanto crescíamos ela envelheceu, fragilizou-se, mas preservou 
suas qualidades. 
Seu “reino” era a cozinha, espaçosa, cujo telhado era coberto por 
camada preta de fuligem. Exímia cozinheira. Passava os dias ao pé do 
fogão, taciturna, concentrada no trabalho. Do fogão recebia o calor das 
labaredas que escapavam de sua fornalha alimentada por achas secas de 
lenha coletadas na caatinga e transportadas em cangalhas por jumentos 
tangidos por lenhadores, vendidos de porta em porta para suprir os fo- 
gões, pois, na época, era o combustível disponível na região. 
Além do fogão, seus instrumentos de trabalho eram: machadinha 
de ferro, facas, chaleiras de flandres e utensílios de barro cozido, tais 
como aribé, buião, panelas, gamelas (pedaço de madeira aparelhada com 
uma concavidade no centro), colheres de pau e o pilão (receptáculo ca-
vado verticalmente em tronco roliço de madeira, cintada ao meio, com 
altura aproximada de um metro, utilizado para moer grãos, o que se 
fazia com a “mão de pilão”, uma tora cilíndrica de madeira aparelhada 
com bolotas nas extremidades). 
Além das tarefas habituais torrava café e moía-o no pilão, como o 
fazia com o milho para o cuscuz, a pamonha e outras iguarias. Confec- 
cionava doces e licores de variados sabores, como o de umbu, goiaba, 
tamarindo, milho (a canjica) e outros, além dos deliciosos sequilhos e 
bolos. 
Cuidava do jardim e das criações de aves, suínos e quelônios (cá- 
gados). 
Era analfabeta e desprovida de ambições. Seu único bem era uma 
humilde casinha no Alto da Jacobina em Queimadas, onde passava o 
final das tardes dos domingos. 
Habitualmente labutava das 6 às 20 h. Nunca reclamou do trabalho 
ou alegou cansaço. 
Estava sempre tranquila, em paz consigo mesma e com todos. Sen- 
timentos de alegria, tristeza, ódio,rancor ou raiva, se os tinha, não os 
exteriorizava. 
Dela emanava a sensação de amor maternal, de afeição, de paz in- 
terior, demonstrando-nos com palavras e atos de amor e carinho. Prote- 
gia-nos, como um animal ampara suas crias. 
Parecia impassível. Nada a exasperava. Era delicada, bem humora- 
da. De quando em vez deixava fluir críticas espirituosas. Era afável. 
Raramente emitia opiniões e, quando o fazia, modificava-a ao sa- 
bor dos que com ela dialogavam. Se havia disputa, oscilava entre os 
contendores. Não costumava desagradar a quem quer que fosse. 
Tinha saúde e vigor físico invejáveis. Tirante o curto período em 
que perdeu a lucidez, era saudável. Em tempo algum a vi doente, acama- 
da. Para os pequenos revezes da saúde, os remédios estavam no quintal 
ou na caatinga. Eram as folhas da pinheira, da goiabeira, da marcela, da 
laranjeira, do pau de rato, ou a casca do angico, erva cidreira, mastruço, 
hortelã e outros. Algumas vezes, por minutos, descansava, permanecia quieta na ja- 
nela da cozinha ou sentada nos degraus da escadaria, mão no queixo, 
cismarenta, olhar perdido no horizonte como a recordar passagens mis- 
teriosas de sua vida! 
Vestia-se com chambre longo de chita e de cores neutras que descia 
até o meio da canela. Seu único adereço era um rosário rústico de contas 
vermelhas (sementes de árvores da caatinga) pendurado no pescoço. 
Dizia-me ter trabalhado para meus avós materno e paterno. Quan- 
do minha Mãe faleceu ela e Mundinha, sua filha, já trabalhavam em nos- 
sa casa. Só deixou de fazê-lo quando o peso da idade não lho permitiu. 
Não falava de seus familiares – pai, mãe, irmãos ou outros parentes. 
Sua família era ela e duas filhas. Não deixaram descendentes. 
Ignorava sua idade. Não tinha registro de nascimento ou outro 
qualquer documento que o comprovasse. Faleceu em 1962. 
Às vezes, à noite, na copa ou na varanda, acomodada em uma cadei- 
ra contava-nos histórias, e nós crianças ficávamos em volta, assentados 
ou deitados no chão, escorados uns nos outros ou descansando a cabe- 
ça em suas pernas. Permanecíamos ansiosos e atentos para ouvir suas 
estórias do arco da velha, narradas com muita verve, inflamando nos- 
sas imaginações. Terminada uma pedíamos outras, até sermos vencidos 
pelo sono. Eram momentos mágicos. Transferíamo-nos para o mundo 
encantado da fantasia, de príncipes, princesas, reis, rainhas, fadas e de 
animais inteligentes e falantes. À vezes dormíamos no “embalo” das 
estórias extraordinárias. 
Assim era Umbelina. Nós a tratávamos, carinhosamente, por Sinha 
Bela ou por Sibilina. Incorporou-se à nossa família. Nós a tínhamos 
como um parente próximo. 
Em duas oportunidades perdeu a razão, mas permaneceu em nossa 
casa. Sua loucura era tranquila. 
Nessas fases tristes de sua vida “discursava” muito. Com frases 
desconexas discorria sobre si e fatos que marcaram sua vida. Em suas 
alucinações reportava-se ao “Belo Monte”. Narrava os horrores que tes- 
temunhara na guerra de Canudos. Pronunciava o nome de Antônio Con-
selheiro com veneração. Referia-se com frequência ao Coronel Constan- 
tino, que, segundo ela, viveu em Vila Nova da Rainha, atual cidade de 
Senhor do Bomfim. 
Reportava-se também ao Engenho da Conceição, denominação 
popular da antiga penitenciária do Estado. 
Agora, perscrutando o passado, imagino que ela e seus pais foram 
adeptos de Antônio Conselheiro, viveram em Monte Belo de onde es- 
caparam do morticínio que encharcou de sangue as margens da Vasa 
Barris. 
A fuga levou-as a Queimadas. 
A chacina que presenciou fê-la tímida e silente. 
No histórico de sua vida há notícias de ter perdido a razão em ou- 
tros momentos, antes de estar em nossa companhia. 
Tinha duas filhas, Maria e Raimunda (Mundinha). Raimunda tam- 
bém se empregou em nossa casa para cuidar das crianças. Foi para o cha- 
lé quando Neuza, minha irmã, nasceu, em 1931, e só nos deixou quando 
se deu a “diáspora” da família; quando constituíram novos núcleos, ela 
também o fez. 
Não tinha vícios. Raramente pitava rude cachimbo ou mascava 
fumo de rolo. 
Não era afeita à religião. Frequentava a igreja católica nas datas fes- 
tivas mais importantes, quando, com traje “festeiro” e com o xale na 
cabeça, ia à Igreja e acompanhava procissões. Não parecia acreditar em 
outra vida ou na existência da alma. Quando alguém dizia temer a velhi- 
ce ela era categórica: – “Morra logo”. 
Para ela a população do mundo era estática: quando nascia uma 
pessoa, outra morria! Havia equilíbrio perfeito entre “entrada e saída”. 
Eu, criança ingênua, acreditava. Parecia-me lógico que assim fosse. 
Hoje lamento que assim não seja. 

(01/02/2006)


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Foto 12. Ilustração com detalhe de pintura de Nicolas Maes

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