Sinha Bela
não obstante, a imagem que a memória reteve é a de uma mulher mais
idosa, de feições tranquilas e ternas, reveladoras de bondade, amor e
compreensão.
Rosto rendilhado de vincos e rugas de cujo emaranhado emergiam
olhos pretos e miúdos.
Seu olhar era triste, parecia voltado para o passado, revolvendo-o
em busca da felicidade destroçada.
Era baixa, tinha a pele clara crestada pelo calor, giba acentuada,
testa curta, pés pequenos, chatos, calosos e rachados. Seus cabelos eram
longos e grisalhos, arrumados em coque assentado na nuca, preso com
um pente.
Seus passos eram firmes e decididos.
Quando saia aos domingos à tarde enrodilhava na cabeça um xale
de cor escura com franjas longas e estampa quadriculada; tinha-o na ca-
beça ou jogado displicentemente sobre os ombros. Era seu abrigo para
o sereno e o frio.
Enquanto crescíamos ela envelheceu, fragilizou-se, mas preservou
suas qualidades.
Seu “reino” era a cozinha, espaçosa, cujo telhado era coberto por
camada preta de fuligem. Exímia cozinheira. Passava os dias ao pé do
fogão, taciturna, concentrada no trabalho. Do fogão recebia o calor das
labaredas que escapavam de sua fornalha alimentada por achas secas de
lenha coletadas na caatinga e transportadas em cangalhas por jumentos
tangidos por lenhadores, vendidos de porta em porta para suprir os fo-
gões, pois, na época, era o combustível disponível na região.
Além do fogão, seus instrumentos de trabalho eram: machadinha
de ferro, facas, chaleiras de flandres e utensílios de barro cozido, tais
como aribé, buião, panelas, gamelas (pedaço de madeira aparelhada com
uma concavidade no centro), colheres de pau e o pilão (receptáculo ca-
vado verticalmente em tronco roliço de madeira, cintada ao meio, com
altura aproximada de um metro, utilizado para moer grãos, o que se
fazia com a “mão de pilão”, uma tora cilíndrica de madeira aparelhada
com bolotas nas extremidades).
Além das tarefas habituais torrava café e moía-o no pilão, como o
fazia com o milho para o cuscuz, a pamonha e outras iguarias. Confec-
cionava doces e licores de variados sabores, como o de umbu, goiaba,
tamarindo, milho (a canjica) e outros, além dos deliciosos sequilhos e
bolos.
Cuidava do jardim e das criações de aves, suínos e quelônios (cá-
gados).
Era analfabeta e desprovida de ambições. Seu único bem era uma
humilde casinha no Alto da Jacobina em Queimadas, onde passava o
final das tardes dos domingos.
Habitualmente labutava das 6 às 20 h. Nunca reclamou do trabalho
ou alegou cansaço.
Estava sempre tranquila, em paz consigo mesma e com todos. Sen-
timentos de alegria, tristeza, ódio,rancor ou raiva, se os tinha, não os
exteriorizava.
Dela emanava a sensação de amor maternal, de afeição, de paz in-
terior, demonstrando-nos com palavras e atos de amor e carinho. Prote-
gia-nos, como um animal ampara suas crias.
Parecia impassível. Nada a exasperava. Era delicada, bem humora-
da. De quando em vez deixava fluir críticas espirituosas. Era afável.
Raramente emitia opiniões e, quando o fazia, modificava-a ao sa-
bor dos que com ela dialogavam. Se havia disputa, oscilava entre os
contendores. Não costumava desagradar a quem quer que fosse.
Tinha saúde e vigor físico invejáveis. Tirante o curto período em
que perdeu a lucidez, era saudável. Em tempo algum a vi doente, acama-
da. Para os pequenos revezes da saúde, os remédios estavam no quintal
ou na caatinga. Eram as folhas da pinheira, da goiabeira, da marcela, da
laranjeira, do pau de rato, ou a casca do angico, erva cidreira, mastruço,
hortelã e outros. Algumas vezes, por minutos, descansava, permanecia quieta na ja-
nela da cozinha ou sentada nos degraus da escadaria, mão no queixo,
cismarenta, olhar perdido no horizonte como a recordar passagens mis-
teriosas de sua vida!
Vestia-se com chambre longo de chita e de cores neutras que descia
até o meio da canela. Seu único adereço era um rosário rústico de contas
vermelhas (sementes de árvores da caatinga) pendurado no pescoço.
Dizia-me ter trabalhado para meus avós materno e paterno. Quan-
do minha Mãe faleceu ela e Mundinha, sua filha, já trabalhavam em nos-
sa casa. Só deixou de fazê-lo quando o peso da idade não lho permitiu.
Não falava de seus familiares – pai, mãe, irmãos ou outros parentes.
Sua família era ela e duas filhas. Não deixaram descendentes.
Ignorava sua idade. Não tinha registro de nascimento ou outro
qualquer documento que o comprovasse. Faleceu em 1962.
Às vezes, à noite, na copa ou na varanda, acomodada em uma cadei-
ra contava-nos histórias, e nós crianças ficávamos em volta, assentados
ou deitados no chão, escorados uns nos outros ou descansando a cabe-
ça em suas pernas. Permanecíamos ansiosos e atentos para ouvir suas
estórias do arco da velha, narradas com muita verve, inflamando nos-
sas imaginações. Terminada uma pedíamos outras, até sermos vencidos
pelo sono. Eram momentos mágicos. Transferíamo-nos para o mundo
encantado da fantasia, de príncipes, princesas, reis, rainhas, fadas e de
animais inteligentes e falantes. À vezes dormíamos no “embalo” das
estórias extraordinárias.
Assim era Umbelina. Nós a tratávamos, carinhosamente, por Sinha
Bela ou por Sibilina. Incorporou-se à nossa família. Nós a tínhamos
como um parente próximo.
Em duas oportunidades perdeu a razão, mas permaneceu em nossa
casa. Sua loucura era tranquila.
Nessas fases tristes de sua vida “discursava” muito. Com frases
desconexas discorria sobre si e fatos que marcaram sua vida. Em suas
alucinações reportava-se ao “Belo Monte”. Narrava os horrores que tes-
temunhara na guerra de Canudos. Pronunciava o nome de Antônio Con-
selheiro com veneração. Referia-se com frequência ao Coronel Constan-
tino, que, segundo ela, viveu em Vila Nova da Rainha, atual cidade de
Senhor do Bomfim.
Reportava-se também ao Engenho da Conceição, denominação
popular da antiga penitenciária do Estado.
Agora, perscrutando o passado, imagino que ela e seus pais foram
adeptos de Antônio Conselheiro, viveram em Monte Belo de onde es-
caparam do morticínio que encharcou de sangue as margens da Vasa
Barris.
A fuga levou-as a Queimadas.
A chacina que presenciou fê-la tímida e silente.
No histórico de sua vida há notícias de ter perdido a razão em ou-
tros momentos, antes de estar em nossa companhia.
Tinha duas filhas, Maria e Raimunda (Mundinha). Raimunda tam-
bém se empregou em nossa casa para cuidar das crianças. Foi para o cha-
lé quando Neuza, minha irmã, nasceu, em 1931, e só nos deixou quando
se deu a “diáspora” da família; quando constituíram novos núcleos, ela
também o fez.
Não tinha vícios. Raramente pitava rude cachimbo ou mascava
fumo de rolo.
Não era afeita à religião. Frequentava a igreja católica nas datas fes-
tivas mais importantes, quando, com traje “festeiro” e com o xale na
cabeça, ia à Igreja e acompanhava procissões. Não parecia acreditar em
outra vida ou na existência da alma. Quando alguém dizia temer a velhi-
ce ela era categórica: – “Morra logo”.
Para ela a população do mundo era estática: quando nascia uma
pessoa, outra morria! Havia equilíbrio perfeito entre “entrada e saída”.
Eu, criança ingênua, acreditava. Parecia-me lógico que assim fosse.
Hoje lamento que assim não seja.
(01/02/2006)
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Foto 12. Ilustração com detalhe de pintura de Nicolas Maes
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Foto 12. Ilustração com detalhe de pintura de Nicolas Maes
Muito lindo! Abraços,
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