Cabeça Dura
Incutiram-me desde criança que sou teimoso e, ainda hoje, sou
tratado como tal.
Alguns diziam que tinha espírito de contradição, comparavam-me a um parente famoso pela teimosia. Procurei ser fiel ao epíteto.
Conto uma estória para corroborar a versão dos maldizentes.
Era uma tarde ensolarada e calorenta, de calmaria absoluta.
Brincávamos eu e meus irmãos à sombra de árvores em um dos jardins do Chalé voltado para a rua, donde víamos o incessante ir-e-vir dos aguadeiros enxotando jericos encangalhados, carregando barris d’água.
As mulheres transportavam-na em latas de flandres, potes de cerâmica, “magicamente” equilibrados no cocuruto da cabeça, assentadas sobre rodilhas de pano. Labuta “sísifica” para dessedentar a cidade. Em idas e voltas da cidade para o rio e deste para a cidade!
De quando em vez tinha a atenção voltada para as catendes (tipo de lagarto) que rastejavam pelo chão, pelas paredes, ocultando- se onde encontravam abrigo. Observava-as com curiosidade e interesse tentando decifrar um enigma.
Os adultos recriminavam-nos quando, a uma indagação, respondíamos meneando a cabeça. Indagavam-nos: você é catende? Papai era mais explícito: “Fale! Você não é catende!”.
Vendo-as, percebi que moviam a cabeça e a cauda com frequência, parecendo comunicar-se com tais meneios. Foi quando compreendi a censura.
Matutava sobre isto quando senti sede. Deixei as “altas conjecturas” e, correndo, galguei a escadaria pedindo, aos gritos, que abrissem a porta (não alcançava a maçaneta da fechadura).
Mundinha que estava próxima, atendeu-me. Tinha na mão esquerda o ferro de passar roupa. Disse- me que entrasse pelo lado oposto para não me queimar. Desafiei-a! Bati-me de frente com o ferro em brasa! Seu calor fritou meu antebraço, parecia-me a ele ter aderido. Contorcendo-me de dores, atirei-me ao chão chorando e gritando. Estrebuchava.
Logo minha mãe acudiu-me, os irmãos acercaram-se curiosos.
Mundinha, babá de minha irmã Neuza, ficou assustada imaginando que perderia o emprego, todavia, não foi responsabilizada. Todos admitiram que o culpado fora eu, com minha cabeça dura. Desta feita dei-me mal.
O tratamento foi demorado e doloroso. No local formou-se uma crosta escura com o formato do ferro. Foram dias de sofrimento. Mamãe foi minha enfermeira carinhosa e paciente.
A marca da queimadura, com o crescimento, passou para o braço.
A “façanha” reforçou o juízo que faziam desta faceta de minha personalidade!
(19/06/06)
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Imagem 29. Pintura de Portinari.
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