Primeira Viagem



Fomos eu e minha Mãe à cidade de Senhor do Bonfim. Foi minha primeira viagem, tinha cerca de quatro anos de idade.
Viajamos de trem. Conhecia-o por fora, à distância, rolando sobre trilhos. Identificava seus rumores, mas, só então, contemplei suas entranhas, sua estrutura, sua vida interior, sentindo seu poder.
Compunha-se de vagões engatados entre si, puxados por uma locomotiva, cuja força, provinha da água e do fogo, do vapor.
Havia os vagões dos passageiros de 1a e 2a classe, o de restaurante e o de carga.
A divisão em classes refletia a sociedade e a projeção do poder econômico.
A 1a classe oferecia mais conforto e as passagens eram mais caras.
Mamãe acomodou-se no restaurante. Como era noite, estava quase vazio.
Era a classe melhor ornamentada: móveis trabalhados, cadeiras confortáveis, mesas e espelhos em algumas “paredes”. Ao fundo ficavam o bar e a cozinha.
Foi quando conheci a luz elétrica, usada em todas as classes.
Em Queimadas a iluminação pública era feita com “lampiões”; nas casas com candeeiros, lanternas, lamparinas e fifós.
Minutos após o trem partir, assustei-me com um ruído estranho. Era a travessia da ponte sobre o Itapicuru, cujas águas corriam mansas para o mar. Tiras largas e grossas de ferro cruzavam-se dando beleza e segurança à ponte. Sobre seu lastro corriam os trilhos da ferrovia do Leste Brasileiro.
A conduta dos passageiros era diversificada. Uns perambulavam pelas classes, falavam alto, fumavam, tossiam e gargalhavam, pouco se importando em incomodar os circunstantes. Outros permaneciam quietos, cochilando, lendo ou dialogando em voz baixa. Pelo adiantado da hora os garçons descansavam. Decorrido algum tempo surgiu um senhor uniformizado, com boné, solicitando a exibição das passagens. Examinava-as e picotava-as. Era o “chefe de trem”.
O comboio avançava. Via pela janela árvores e casas que pareciam rodopiar! Mamãe percebeu que eu estava tonto e recomendou-me olhar para frente.
A primeira parada foi em Itiúba, na época, distrito de Queimadas.
Na plataforma estavam primas que ali moravam. Conversaram até a partida. No ar ficou o adeus de mãos estendidas.
O balanço do trem, seu cheiro peculiar, seus ruídos típicos, o tilin- tar de ferros, o apito breve ou longo da “Maria Fumaça” e o aconchego do colo materno, fizeram-me dormir.
Acordei com o chiado dos freios da locomotiva e o burburinho dos passageiros que se arrumavam para o desembarque. Acabávamos de chegar à estação do Senhor do Bonfim. Era dia claro.
Ainda zonzo de sono, vi o desembarque de passageiros, alguns ape- nas para alimentar-se com as iguarias mercadas pelos vendedores: café, bolo, pão, mingau, frango assado e outras.
Fomos recebidos por D. Hercília, amiga de nossa família que, gentilmente, nos acolheu em sua casa.
Alguns dias depois foi o retorno. Novo embevecimento. A parada nas estações, o movimento nas plataformas, os vendedores de guloseimas.
Finalmente o reencontro com Papai e com meus irmãos. Era dia claro. Fomos para casa. Para mim estava sombria, escura, com as janelas fechadas.
Parecia-me ter descoberto um novo mundo. Dos irmãos era o único “viajado”. Foi como se tivesse descoberto o mundo.

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Foto 34. Passagem do Presidente Afonso Pena pela Estação de Queimadas, em 1908. Autoria desconhecida.

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