Gabriel




Esse era o nome de uma pequena fazenda de pecuária encravada na caatinga em uma planície onde afloram quase rentes ao chão, rochas de diversos formatos; quando eram côncavas denominavam-se caldeirões, aproveitados como reservatórios de água potável, semi-oculta sob espessa camada de vegetação aquática – água-pé e lentilhas d’água – de folhas miúdas e flores lilases. Sobre esse “tapete verde” as aves catavam alimento. Próximos aos lajedos e, às vezes, sombreando-os, havia umbuzeiros, ouricurizeiros, xiquexiques, aroeiras, mandacarus, cabeças de frade, alecrim e outros vegetais típicos da caatinga.


A casa da fazenda era humilde, coberta de telhas, piso de tijolo cozido, paredes de taipa (armação de madeira trançada com enchimento de barro). Na fachada principal havia uma porta, duas janelas e uma varanda. Em seu interior uma sala, três quartos e um cômodo para depósito de ferramentas, arreios de montarias e armazenagem de cereais.
Em um telheiro fora da casa ficava a cozinha, cujas paredes e telhado foram enegrecidos pela fuligem. O fogão, feito de adobes encimados por uma chapa de ferro fundido, tinha quatro bocas. O dia inteiro era alimentado com lenha coletada nas cercanias.

Na malhada – terreno em frente à casa – coberta com vegetação rasteira destaca-se um umbuzeiro solitário. Sobressaem, pela altura e pelo contraste com a caatinga, três pés de eucaliptos, árvores exóticas.
Currais feitos de madeira carcomida pelo tempo ladeavam a casa. Tinham o chão coberto de esterco de onde exalava cheiro acre de urina e fezes. O maior deles era o curral do gado bovino; os outros dois, denominados de chiqueiros, eram dos caprinos e ovinos.

O gado era confinado à noite e solto ao alvorecer após a ordenha e o tratamento com assepsia e curativos nos que estivessem feridos e com bicheiras. Soltos, embrenhavam na caatinga, onde pastavam. Crias e animais de montaria permaneciam nas roças. Ao cair da tarde retornavam. A malhada ficava apinhada de animais “aguardando” serem tangidos aos currais. O retorno revelava que não perdiam o rumo nem o “amor” às crias. Aproximavam-se balindo, berrando e mugindo; toada enriquecida com o ladrar dos cães e o mavioso canto de aves e pássaros. O tilintar dos chocalhos dava mais encanto ao momento mágico. Sua sonoridade era peculiar, permitindo ao vaqueiro identificar o animal à distância e o trazer por uma correia de couro pendurada ao pescoço. Era comovente vê-los reencontrar os filhotes. Cheiravam-se, acariciavam-se, mugiam e berravam, expressando, assim, alegria e satisfação pelo reencontro. No horizonte o sol esgueirava-se e sumia.
O acesso ao Gabriel, a 19 quilômetros de Queimadas, é feito pela estrada de rodagem que liga Queimadas à Cansanção, na altura do Marruá, de onde se envereda por via carroçável de cerca de 2 km até a sede da fazenda. As viagens ao Gabriel, onde às vezes passávamos dias de férias – Demi, Ivan, e eu – foram feitas no lombo de jegues ou burros em passos tardos, sentados entre caçoás. Conduzia-nos João, filho de Seu Tonho.
No Gabriel vagávamos pelas roças ou pelas trilhas na caatinga, sem nos aventurarmos a grandes distâncias. Temíamos ser areados pela caapora. Mas, lá um dia, às escondidas, arriscamo-nos em uma grande viagem! Desaparecemos! Os adultos ficaram zonzos, inquietos. Puseram em nosso encalço um rastreador!

Fizemos uma excursão ao Monteiro, fazenda de meu pai, cuja sede dista cerca de 10 quilômetros do Gabriel. Enfrentamos a estrada coberta de cascalho miúdo, com pequenas pedras que tornavam a caminhada mais lenta. Chegamos ao Monteiro com o Sol “alto”. Mentimos a João Carreiro, vaqueiro de meu Pai. Dissemos-lhe que tivéramos o consentimento de Seu Tonho. Ele estranhou e aconselhou- nos voltar. Ao retornarmos encontramos o rastreador que nos levou ao Gabriel. Seu Tonho, dono da fazenda, falou-nos do risco a que nos expusemos, como o eventual encontro com a caapora que nos desviaria de nosso rumo, deixando-nos perdidos no mato! Ponderou que não leváramos fumo ou outra coisa que quebrasse seu “encantamento”. Apesar dos riscos e da repreensão, a “viagem” valeu como demonstração de coragem, de auto afirmação.

As noites eram frias e de recolhimento. À luz dos fifós e das lamparinas contava-se histórias ou jogava-se baralho – “burro”. Seu Tonho era vaqueiro. Um sertanejo forte, já entrado nos anos, cara larga e vincada, zigomas salientes, barba e cabelos crespos e grisalhos, tronco largo, braços curtos e musculosos, mãos grandes e trêmulas – como trêmula era sua voz –, pernas arqueadas, pés chatos e rachados enfiados em sandálias de couro cru. Usava, com habitualidade, alpercatas, colete de couro cru, calças de zuarte azul e camisa de algodão. Quando necessitava enfrentar a caatinga à procura de alguma rês tresmalhada, trajava-se com “rigor”; usava roupa de couro (colete), gibão, perneiras, chapéu e sapato – a “armadura” do vaqueiro –, proteção contra as asperezas da flora sertaneja. Ao raiar do dia estava em campo para a labuta e voltava ao cair da tarde, cansado e extenuado. Sentava-se em banco rústico, no vão entre a cozinha e a casa, e uma das filhas com gamela e água aquecida, lavava, massageava e enxugava seus pés. Era um ritual de ternura.

D. Porfíria, sua mulher, era velhinha, rosto enrugado, corpo arqueado, cabelos brancos e longos enrolados em coque presos na altura da nuca. Saias de chita desciam-lhe até o meio da canela. Parecia-me cansada de viver. Pouco falava. Em silêncio cuidava dos afazeres domésticos. Era meiga e tranquila. O casal tinha cinco filhos: Maria, Oscar, João, Edvirgens e Zefinha. Zefinha era a caçula, a mais franzina e retraída. Falava o indispensável. Arrastava-se lentamente pela casa. As cores neutras e marrons de suas vestes revelavam sua personalidade, seu interior amorfo. João, o filho varão, tinha compleição franzina, teria uns 20 anos e cuidava do criatório miúdo – carneiros e bodes. Ia às feiras em Queimadas para vender cereais, farinha, aves e comprar o necessário para o sustento da família. Oscar e Edvirgens cuidavam das aves – galinhas, perus e saqués. Trabalhavam também na colheita do ouricuri, que consistia no corte dos cachos e na extração das amêndoas com a quebra das cascas, o que era feito sob sombras de árvores frondosas. Aves e porcos aproveitavam as “sobras”. Na região abundam ouricurizeiros, palmeiras nativas na região.

Era trabalho das mulheres retirar água dos caldeirões colocá-la em latas e levá-las, equilibradas na cabeça, para casa. Trabalhavam também no pequeno fabrico de requeijão e de manteiga. Edvirgens e Oscar eram comunicativos e alegres. Tinham boa compleição física e irradiavam simpatia. Todos nos tratavam com carinho, atenção e cuidados. Éramos crianças. A alimentação era farta e saudável, consistia em ovos, carne de carneiro, bode e aves, grãos, como feijão e arroz, além do leite abundante e de seus derivados – coalhada e requeijão, fabricados em casa. Seu Tonho tinha bom cabedal em bovinos, caprinos, ovinos e suínos.

De suas filhas, apenas Maria, a mais velha, casou-se. O casamento deu ensejo a uma festa que durou três dias. Próximo à casa, na malhada, armaram-se latadas enfeitadas com bandeirolas coloridas de papel de seda. Era onde os convidados se regalavam comendo e bebendo. As bebidas preferidas eram a pinga e jinjibirra. A comida era abundante e saborosa. Seu Tonho não mediu esforços – sacrificou novilhos, suínos, carneiros, bodes, galinhas e perus. Apareceram pessoas das redondezas e de locais mais longínquos, amigos da família ou simplesmente conhecidos, estranhos, convidados ou não. Dois sanfoneiros, três gaiteiros e “cantores” das modinhas sertanejas, animavam a festa. O arrasta pé rolava dia e noite. A cantilena atravessava a noite, entrava pela madrugada e recomeçava no dia seguinte.

A festa por muitos anos foi lembrada como a mais animada, a mais alegre, a mais farta em comidas e bebidas da região. Não há notícias de outra igual!


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Imagem 44: Cactus (fonte: internet).
Imagem 45: "Casamento na Roça", de Beth Costa (fonte: internet)

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