Lúcio



Lúcio era um molecote de 12 anos. Atarracado, cabelos crespos, cafuzo, andar leve e rápido, sempre disponível a fazer favores em troca de alguns tostões. Era o “leva-e-traz”, como foi apelidado pelos cole- gas.
Foi aluno de minha Mãe. Na escola era brincalhão, tagarela, inquie- to. Não adiantavam repreensões, tinha “saídas” chistosas para tudo.
Papai contava divertidas estórias que o envolviam. Eis algumas delas: 


MULA-SEM-CABEÇA

“É a forma que toma a concubina do sacerdote. Na noite de quinta para sexta- feira, transforma-se num forte animal, de identificação controvertida na tradição oral, e galopa, assombrando quem encontra... Galopa e lança chispas de fogo pelas narinas e pela boca. Suas patas são como calçadas de ferro. A violência do galope e a estridência do relincho são ouvidas longamente. Vezes há que soluça como criatura humana. É aterrorizador.”
Câmara Cascudo
in Dicionário do Folclore Brasileiro, 9a. edição, cópia livre.

Meu pai, em viagem ao Cumbe (hoje Euclides da Cunha), atendeu ao pedido do Lúcio e levou-o. Curioso, ele queria viajar de automóvel, conhecer a grande novidade. Era o primeiro carro que circulava pela cidade.
A viagem de Queimadas ao Cumbe era uma aventura. A estrada era uma vereda carroçável.
Lá se foi o Lúcio, “encarapitado” no Ford 27 dirigido por meu Pai.
Foi uma extraordinária façanha. Colegas e amigos invejaram-no. 
Naquela época, final da década de 20 do século XX, nas cidades do Interior, o homem utilizava a própria força ou a de animais para locomover-se ou para transportar mercadorias.
O automóvel de meu Pai foi, na região nordestina do estado da Bahia, um dos pioneiros. Em Queimadas o primeiro a circular em suas ruas.
Lúcio viajou cerca de 250 km entre ida e volta.
Intrigava-o a capacidade de o carro mover-se sem força animal. Fazia-o por si. Com suas forças subia e descia ladeiras. Para ele era assombroso. Fez perguntas e mais perguntas tentando esclarecer-se. Não o conseguiu. Sua inteligência era curta para entender a mecânica do carro.
A tecnologia do final do século alcançara o Nordeste baiano na segunda década do século XX, causando espanto e admiração. Era o choque de culturas: carro de boi versus automóvel.
Chegaram ao Cumbe na tarde do segundo dia de viagem. A demora era justificável face à precariedade da estrada, em verdade, simples veredas.
Algumas vezes interrompia-se a viagem, ou para podar árvores, cortando com facão ou machado galhos que impediam a passagem do carro, ou para reabastecê-lo com gasolina transportada em latas de 30 li- tros. Pararam também para relaxar à sombra de umbuzeiros, colher seus frutos e deliciar-se com seu sabor acre-doce.
Leve-se em conta também o pernoite no Povoado de Cansanção, na casa de Sr. Domingos.
No Cumbe o carro fez sucesso. As escolas cerraram as portas para permitir aos alunos e professores verem de perto a “coqueluche” do momento.
A maioria da população foi ver de perto a “geringonça”.
Papai recomendou a Lúcio dormir no carro para protegê-lo dos curiosos.
Ele se recusou alegando ter medo de mula-sem-cabeça, pois os meninos advertiram-no que a partir da meia-noite apareciam em fila, relinchando e expelindo chispas de fogo pelo nariz e pela boca.
Impossível foi convencê-lo que era brincadeira, invencionice para amedrontá-lo. Dormiu na pensão.
No dia seguinte disseram-lhe que as mulas-sem-cabeça, de madrugada, foram ver o carro. Para comprovar o que diziam mostraram-lhe o rastro do monstro.
Lúcio fez questão de apontá-lo a meu pai que, em vão, tentou convencê-lo que era malandragem da garotada. Qual nada! Lúcio levou para Queimadas a estória da mula-sem-cabeça como se verdadeira fosse.
Certo esteve o Lúcio! 


OUTRA DO LÚCIO

Um dia Lúcio chegou à escola alegre, sorridente, cantarolando, satisfeito com a vida, se “cartando” com os colegas.
A Professora perguntou-lhe:
– Lúcio, por que está tão alegre?
Ele, compenetrado, respondeu-lhe:
– Porque, sozinho, papei uma cousa gostosa! E lambeu os lábios.
– Que gostosura foi essa?
Ele respondeu-lhe estalando a língua:
– Duas latas de leite moça, estava ótimo!
– Quem lhe deu tanto leite?
– Foi seu Joaquim, dizendo: “Lúcio, pode comer toda, pois não presta”!
Lúcio levou três dias sem ir à escola, quando voltou, estava abatido! Aí foi a vez dos colegas tirarem “casquinhas” dele.


AINDA O LÚCIO
Lúcio travou o seguinte diálogo com meu Pai:
– Seu Joãozinho, não acredito nesta professora Lourdes. Ela não é professora!
– Mas por que Lúcio? – Porque é magra!
– E o que tem isto?

– As professoras que conheço são gordas como as professoras Cecy e Maria José! 

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Imagem no. 53: foto © Ruud van Empel

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