Corajoso


Morávamos em uma mansão em meio a um bosque, circundada por árvores, arbustos, cactos e por onde pastavam animais.
Para nós crianças, as dimensões e distâncias pareciam grandes. Eram sete quartos, um reservado aos santos onde ficavam oratórios e imagens. Dizíamos que era o lugar das almas.
Havia outros recantos que exacerbavam nossos temores. Lugares “longínquos”, “ermos”, pouco frequentados: as salas de visitas, de espera e o portão de ferro.
As estórias de assombrações nutriam e robusteciam o medo.
Os adultos narravam-nas com vivacidade tal que nos sentíamos no epicentro da estória, como se os fantasmas estivessem entre nós.
Encerrada a sessão macabra, ficava o pavor. Dormíamos tensos e emocionalmente fragilizados.
Apesar de medroso, era “mestre” em “criar”, “fabricar” espantalhos com características humanas, produzindo ruídos “misteriosos” para apavorar irmãos e primos. O lugar propício para as “aparições”, lógico, era o quarto dos “santos”.
Muitas vezes ao cair da tarde ali foram vistos, contritamente ajoelhados, orando diante dos nichos, seres que se imaginava de “outro mundo”. Quantos gritos e quantas correrias provocavam!
Por tudo isso, ir à sala de visitas, de espera ou ao portão, era ato de bravura.
Fazíamos apostas para ver quem tinha “raça” para ir a um desses lugares.
Às vezes um de nós tentava superar o medo, aventurando-se. Os mofinos ficavam à distância, observando, e, quando menos se esperava, o aventureiro voltava às carreiras, arfante, trêmulo, sem fala! Ficávamos transidos de medo e corríamos.

Graças a Deus, nem todos eram poltrões. Salvou-se o ariano!
Sim, em nosso grupo havia 2 arianos, Neuza e Demi – brancos e louros –, o que valeu a Demi a alcunha de “mister”.
Ponderado em suas atitudes, dizia-se que era um menino “ajuizado”. Entre nós, e mesmo entre os adultos, notabilizou-se por sua intrepidez invulgar! Somente ele tinha a petulância de ir até o fim da prova de “fogo” – chegar ao portão de ferro ou às salas distantes – Isso durante o dia. À noite nem pensar!
Quando empreendia tais façanhas, parecia um soldado de chumbo: empertigado, tenso, solene, em marcha batida.
A “galera”, à distância, ficava de olho à espera de um sinal para disparar.
Qual nada! Ele ia e voltava compenetrado, botando pose, tranquilo.
É verdade que se resguardava. Não olhava sequer para os lados. Era um autômato. Parecia apavorado, mas mantinha-se firme.
Suas façanhas fizeram-no respeitado, admirado e invejado por todos. Ao titulo de ajuizado juntou-se o de “raçudo!”.
Papai conhecia sua fama e testava-o mandando-o verificar se o portão e as janelas estavam fechados. 

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Imagem 54: fotomontagem com a fotografia de Demi, por Neyde Lantyer.

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