Catarina, a ex-escrava





“Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes! Em que mundo, em q’estrela Tu t’escondes? Embuçado nos céus? Há dois mil anos Te mandei meu grito, Que embal- de, desde então, corre o infinito... Onde estás Senhor Deus?...”
Castro Alves Os Escravos in Vozes D`África. 

Na escola e em casa ouvíramos falar da escravidão no Brasil e do sofrimento infligido aos negros.
Com seis anos de idade pensava ser mais uma estória da carochinha dentre as muitas que me contavam.
Estávamos Demi (meu irmão), o primo Ivan e eu, passando dias de férias no Gabriel, fazenda de Seu Tonho.
Nunca víramos um escravo. Admiramo-nos ao saber que próximo de onde estávamos morava uma ex-escrava.
Era a oportunidade para desmistificar o que nos parecia lenda. Pedimos para vê-la.
João, filho de Seu Tonho, levou-nos à sua morada. Andamos cerca de 400 metros e logo vimos o casebre onde ela vivia.
Aproximamo-nos.
Recepcionaram-nos lânguidos latidos de um vira-lata esquelético, olhos remelentos e tristonhos, cujo nome – leão – contrastava com sua fragilidade.
João tentou acalmá-lo.
No terreiro, as aves espantaram-se.
A choupana estava envolta pela caatinga, na época, verde e viçosa. Assim estavam o alecrim, o juazeiro, o mandacaru soberbo – cuja altivez contrasta com a pequenez do cabeça de frade –, o xiquexique, o pau de rato – com galhos tortuosos e ásperos –, o são joão com flores amarelas, os ouricurizeiros, o umbuzeiro e outras espécimes vegetais.
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Próximo à choupana João gritou: “Ô de casa!”. A resposta foi incontinente: “Ô de fora!”. João retrucou: “É de paz! É João, Nhá Catarina!”. Esse era seu nome.
A pequena porta foi aberta.
À nossa frente estava uma negra pitando tosco cachimbo, carapinha branca, rosto vincado, olhos pretos e miúdos, engastados em órbitas profundas, olhar triste e mortiço revelando cansaço da vida solitária e sofrida.
Seu corpo franzino sustentava-se em pés fendidos e descalços, vergava. Apoiava-se em um bastão. Seu andar era trôpego.
Por segundos ficamos estáticos e silentes.Os olhos registravam o que viam.
João rompeu o mutismo e disse: “Nhá Catarina, os meninos são bisnetos do Cel. João Antônio de Araújo, da Serra Branca”.
Ela arregalou os olhos, abriu a boca em um riso de gengivas. Marejaram-se-lhe os olhos e, com voz rouca e trêmula, tartamudeou algumas palavras ininteligíveis.
Trazia, jogado nos ombros, um pano branco. Vestia uma saia velha de chita, que descia até o tornozelo e, pendurada ao pescoço, uma volta feita com sementes vermelhas de árvores nativas como o mucunã, às quais se atribuíam poderes miraculosos.
Com a fala rouca, quase um lamento, pediu-nos que entrássemos e apontou o único móvel da sala, um banco velho, carunchoso, para sentarmos. Acomodamo-nos com dificuldade, o banco oscilava.
O ambiente era sombrio e abafado. Faltava-lhe ventilação e luminosidade.
Ela e João ficaram em pé.
Ela, com o queixo apoiado em uma das mãos, ficou a observar-nos e a responder às nossas indagações.
Tínhamos dificuldades para entendê-la. Sua voz era engrolada e trêmula. João servia de “intérprete”.
Catarina falou-nos de nossos bisavós e de seus filhos, recitando-lhes os nomes: Cincinato, Francisco, Oscarlindo, Balbino, Exalto, Djanira, Cecílio, Antônio Macário, João Exalto e Maria Tito. Disse-nos ter sido escrava do Coronel João Antônio.
A pequena choupana era coberta com palhas secas de palmeiras, tinha o piso de terra socada e as paredes de taipa (armação de madeira entrelaçada com enchimento de barro cru).
Em seu interior, além do banco, havia uma pequena mesa e um jirau que lhe servia de cama. Tudo era tosco.
No pequeno quintal havia uma latada coberta de palhas. No chão três pedras formavam uma trempe onde assentava uma panela de barro, sob esta, o fogo alimentado por gravetos secos. Galinhas ciscavam em volta.
Catarina morava só. Sua companhia era o “leão”.
Não tinha ninguém por ela, salvo a bondade de Seu Tonho e de seus familiares. Não conhecera seus pais, de quem fora separada quando era criança. O Coronel já falecera.
Não desenvolvia qualquer atividade, vivia do que lhe davam, da pesca no açude Monteiro, da caça de pequenos animais e dos frutos da caatinga, como o umbu, araticum, pitomba, ouricuri e frutos do man- dacaru.
Não tinha lembranças do passado, nem se preocupava com o futuro.
Passados alguns minutos, cansados do banco incômodo, pusemo-nos de pé e tomamos a direção da porta.
Catarina, com gesto amigo e carinhoso, passou as mãos ásperas sobre nossas cabeças.
Fomos embora sem compreender o sentido daquela vida despojada de tudo. Catarina permaneceu na porta até que nós desaparecermos na caatinga. Voltou à solidão! 

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Imagem 61: Fotografia encontrada na internet.

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