“Abo! Abo!”


Com esses xingamentos reagia quando estava apoquentado. Eram as únicas sílabas que, com esforço, conseguia pronunciar para expressar raiva e indignação: “Abo! Abo!” (Diabo! Diabo!). Mudo e surdo, comunicava-se através da mímica, dos gestos.
Uma vez importunado ficava colérico, ardia de ira. Tenso, desabafava com o xingamento silábico seguido de acenos nervosos e indecorosos. Nesses momentos parecia que de seus lábios jorrariam, aos borbo- tões, palavras agressivas e virulentas, tal a raiva que transparecia em sua face e na angustiosa gesticulação.
Janjão Mudo, assim era conhecido em Queimadas.
Morava com uma tia idosa em casa próxima à que tinha a tenda de trabalho.
Artesão, exímio marceneiro, confeccionava móveis, brinquedos e gaiolas. As pontas de seus dedos eram impregnadas de verniz amarelo usado no polimento dos móveis. Franzino, feições finas, magro, emper- tigado, elegante, moreno, calvo, cabelos grisalhos, olhos miúdos, olhar profundo e inquisitivo. Seu semblante revelava ansiedade, inquietude.
Era tratável. Convivia em sociedade demonstrando que tivera boa educação.
Tinha boa saúde, sempre limpo, trajava camisa esporte e, às vezes, paletó e sapatos pretos. Seu caminhar era lépido, agitado, mas, onde via uma roda de pessoas, detinha-se e aproximava-se para saber de que tra- tavam. Era curioso, conseguia captar novidades e passava-as adiante.
“Voyeur”, à noite, postava-se em lugares estratégicos para bisbilhotar casais de namorados. Não guardava segredo do que via!
Primo carnal de meu pai seguia seus passos na política. Defendia-o e aos seus candidatos com ardor.
Crianças, quando saíamos à rua, se nos visse, ficava vigilante ao que estávamos fazendo ou o que podiam fazer conosco.
Quando havia bailes no clube local permanecia no “sereno” até altas horas da noite.
João Franco de Araújo, este era seu nome completo.
Sua vida era espartana, trabalhava na tenda, onde tinha um catre que lhe servia de leito.
Tinha consciência dos laços de parentesco e procurava preservar a amizade com a parentela. Visitava-os e levava noticias do que percebia em suas andanças nas ruas. Difícil era entendê-lo.
Não tinha irmãos, seus parentes eram uma velha tia e primos. Não deixou descendente. Não há notícias de mulheres em sua vida, o que motivava arrelias, brincadeiras que o enfureciam, principalmente quando insinuavam que era impotente.
A morte de tia Maria Tito, que lhe dava aconchego, “desarrumou” sua vida. Sua saúde ressentiu-se. Um parente levou-o para Salvador e internou-o no Abrigo do Salvador. Sofreu com a mudança, em pouco tempo faleceu.
Maria Tito foi a única parenta – tia avó – da geração de meu avô paterno Francisco Lantyer, que conheci. Quando a conheci tinha mais de 80 anos, morreu com 95 anos.
Viúva, trajava-se com uma bata preta que lhe descia até os tornoze- los. Seus olhos eram grandes e grandes eram as orelhas e o nariz. Sua voz era rouca e pesada. Vivia com Janjão e uma filha de escravos, Elvira. 

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Imagem 63: desenho de Rembrandt

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