Midu


Retenho na memória seus traços fisionômicos, seu perfil físico, psicológico e emocional.
Que me lembre vim a conhecê-la aos sete anos de idade, quando, na companhia de meu pai, fiz a primeira viagem a Salvador, onde ela residia, morando em um quarto no centro da cidade.
Fui ao seu encontro à noite. Embeveci-me com a luz das ruas, habituado que estava em Queimadas à escuridão apenas amenizada nas noites de Lua cheia. Recebeu-me com alegria, com muito carinho e afeto, como se fora um filho que não via há muito tempo.
Era época de carnaval. Ela pôs a vitrola a tocar uma música carnavalesca. Encantei-me com a vitrola, diferente da que tínhamos em casa. Fiquei observando como funcionava. Serviu-me delicioso sorvete e deu-me brinquedos.
Retornei a Queimadas dois dias após o encontro com Midu e dela levei, não só os brinquedos, mas boas recordações, inclusive da vitrola.
Em casa narrei como a vitrola funcionava e o fazia com muita gesticulação, como se estivesse movimentando uma manivela, o que serviu de mote por algum tempo para arrelias. Fui para ela o filho que não teve.
Não obstante a distância, seu nome não era esquecido. Nas “brigas” entre irmãos e entre primos a sobra ficava para os padrinhos e madrinhas. Eu a defendia com unhas e dentes e fazia inveja aos demais com os brinquedos que ela me dava.
Voltei mais aguerrido, compenetrado de que ela merecia mais do que podia fazer para defendê-la. Passaram-se anos para revê-la.
Reencontrei-a em 1941 quando vim morar em Salvador, no Tororó e, mais tarde, em 1944, época em que ela residia em Itacaranha, subúrbio de Salvador.
Às vezes eu e meu irmão Demi passávamos alguns domingos com ela, ocasiões em que nos servia deliciosa feijoada.
Sua humilde casa era quase dentro do mar. Quando a maré enchia a água da maré batia na porta do fundo. O lugar era paradisíaco.
Foi a partir daí que tivemos maior aproximação, que melhor nos conhecemos.
De 1943 até sua morte em 1974, foi uma pessoa constante em minha vida.
Vejo-a na névoa do passado, senhora idosa com ares joviais na postura, nos cuidados com a estética facial, no humor, na conversa desabrida e no palavreado sem peias.
Baixa, morena clara, corpo cheio, ancas fartas, pernas secas levemente arqueadas com pelos e pés achatados, “apontando” para os lados.
Cabeça bem formada, ornada com cabelos fartos, finos, ondulados, cuja tonalidade real ocultava-se sob camadas de tinturas que lhes davam cores furtivas, nuances variadas, ora, louros, ora, azulados, o mais das vezes acaju. Rosto anguloso e expressivo, olhos miúdos, vivazes, olhar perscrutador, às vezes repousante, sobre eles traços de tinta preta à guisa de sobrancelhas. Nariz achatado, acima dele os óculos e, abaixo, transparece buço dissimulado. Lábios finos em boca larga. Orelhas grandes, alongadas nas extremidades inferiores pelo uso constante de brincos. Pequena curvatura nas costas. Cuidava da aparência. Trazia lábios, unhas e maçãs do rosto pintados. Foi vaidosa.
Trajava-se modesta e discretamente com roupas claras, predominando tecidos estampados com fundo branco, rosa ou lilás. Usava sapatos com salto médio.
Fora bonita, do que tinha consciência. Retratos mostram a pujança de sua beleza na mocidade e na maturidade.
Seus passos eram firmes, mas, lentos. A depender das circunstâncias, tornavam-se ágeis, furtivos e cautelosos, como se fora um animal na espreita, acomodando- se para o bote certeiro. Assim procedia quando supunha estar na “berlinda”.
Seu intento era surpreender o “inimigo” e “trucidá-lo” com boa descompostura.
Era impossível conter-lhe as emoções. Ao ataque, reagia com vigor. Sua arma era a palavra. Tinha-a na ponta da língua, de diversos “calibres”, prontas para o “tiroteio” verbal.
Áspera, sem tramela na língua, quando se zangava vituperava.
Com a voz sibilante, quase assobiando, carregando nos “ss” e nos “xx”, manifestava indignação com gestos e palavras agressivas. Lutava e vencia.
Alegre, prosa agradável, extrovertida, mas de difícil convivência.
Apesar de seu exotismo, não era má.
Sua presença descontraia os circunstantes; seus rompantes animavam o bate-papo.
O trato com ela deveria ser cauteloso porque estrilava por pouco.
Sua natureza era de difícil compreensão. Por pouco implicava com as pessoas, procurava descobrir-lhes defeitos ou criá-los.
Alegre, descontraída e irreverente. Linguajar solto, sem peias, desabusada, sem rodeios, valendo-se, quase sempre, de expressões chulas.
Com a morte de seu marido, Messias Roma de Oliveira, passou a viver só. Controlada, mantinha suas despesas nos limites de sua modesta pensão.
Não trabalhava. Passava os dias conversando com vizinhos ou ouvindo pequeno rádio de bateria, atenta às novelas e ao noticiário. A televisão ainda era artigo caro e de luxo.
Morava em quartos alugados em pensionatos ou casas de família. Com frequência mudava de residência, ou porque não gostava do alojamento, ou porque cismava com a vizinhança ou a vizinhança com ela.
Gostava de conversar, de ouvir e contar histórias sobre as mazelas humanas.
Não havia maldade em suas atitudes. Agia impulsivamente, sem caso pensado.
Os jovens gostavam de ouvi-la contar suas histórias hilariantes.
A ninguém, nem mesmo a mim, confessou sua idade real. Verifiquei em testamento feito em cartório que ela rasurou a data declarada ao tabelião.
Quando lhe indagavam a idade respondia dando uma risada gostosa: “Sou a mulher mais velha do mundo!”.
A par de levar-me presentes, às vezes levava-me problemas: intrigas e desavenças com a vizinhança. Em uma dessas vezes, recém formado, fui parar na Delegacia de Polícia para defendê-la.
Era alfabetizada, todavia, não era dada a leituras.
Quando ia ao médico entregava-lhe uma tira de papel onde relacionava seus achaques observados ao longo de meses.
Suas “tiradas” ainda hoje são lembradas entre saudades e risos.
Seja pela inquietação, seja pelo barulho que fazem, não gostava de crianças, rotulava-as de “legião de Satanás”. As crianças também não a poupavam, debicavam de seus exotismos, de suas implicâncias!
Conta-se que seu marido pegou no sanitário um pedaço de jornal que estampava foto de Ruy Barbosa sujo de fezes e mostrou-o a pessoa amiga que estava em sua casa dizendo-lhe: “Veja o Senhor o que é ter uma mulher ignorante: limpar-se com um retrato de Ruy!” Ao que ela retrucou: “Não me limpei com o seu porque não o encontrei!”.
Em determinada ocasião desembarcou do trem na estação da Calçada, em Salvador. Sem poder andar, pediu a funcionários do Leste Brasileiro que a conduzissem ao sanitário para urinar. Não foi atendida.
Estava na plataforma da estação onde transitavam centenas de pessoas, não obstante não fez por menos: urinou ali mesmo! Depois desse gesto foi carregada como uma “rainha” e posta em “carro de praça”.
Quando mofávamos de seus achaques, alertava-nos: “Deixa estar, vocês estão no auge, mas ele passa!”.
Sábia advertência.
No final da vida frequentava a Igreja Católica. Ia à missa e orava. Nunca a vi lamentar-se da vida.
Quando, por qualquer motivo, ralhava comigo, após dizer-me algumas palavras de censura, concluía com essa expressão: “caramba, xixilado!”.
Quando me recusava a atender algum pedido seu, dizia-me: “Todo mundo é muito bom, mas meu chapéu está na pedra de ilhéus e ninguém foi buscá-lo!”.
Assim foi minha querida madrinha Midu que tanta afeição me dedicou.
Dela ficaram-me gratas recordações. Faleceu em junho de 1975.

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Imagem 67: Retrat de Midu (acervo da familia)

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